Se você é uma dessas pessoas que sempre trabalhou no esquema tradicional — 8 horas/dia, 5 dias na semana no escritório — e teve o privilégio de adotar o home office nesses tempos de pandemia, eu tenho uma pergunta pra te fazer: como tem sido essa experiência até agora? Como está a sua saúde mental no home office?
Não é mera curiosidade. É que quando essa pauta “trabalho remoto + saúde mental” surgiu num bate papo entre a nossa equipe, eu achei de verdade que seria uma equação simples. Pudera, estou habituada a associar a modalidade com as clássicas — e verdadeiras — vantagens: flexibilidade, liberdade, qualidade de vida e, sim, a tão mal falada ultimamente: produtividade.
Qual não foi minha surpresa, você pode imaginar, quando ao fazer uma pesquisa rápida no Google me deparei com algumas matérias e dados, no mínimo, alarmantes.
Certo artigo do El País traz a seguinte manchete: “O sonho do ‘home office’ vira pesadelo na pandemia”.
Entre depoimentos de profissionais sobrecarregados e sufocados com o isolamento, o artigo cita uma pesquisa do Centro de Inovação da Escola de Administração de Empresas de São Paulo (FGV-EAESP) que aponta que, durante a pandemia, 56% dos entrevistados em regime home office afirmaram estar tendo dificuldades para equilibrar a vida pessoal e profissional.
Mas as queixas vão além: 34% consideram difícil manter a motivação e 36%, continuar com a mesma produtividade.
Outro artigo, do Summit Saúde, do Estadão, indica diversos estudos que vêm relacionando a adoção do home office no contexto da pandemia ao aumento nos níveis de ansiedade, depressão e outras questões neuropsicológicas.
54% dos entrevistados em uma pesquisa da startup de tecnologia em recursos humanos, Pulses, apontaram o excesso de trabalho como uma das principais origens para sua ansiedade, por exemplo.
Juntos, esses dados me fazem questionar: será que sempre foi assim e eu nunca percebi? Será que eu e meus amigos mais próximos somos a exceção, que não se sente exatamente representada nestas pesquisas?
Algo de errado não está certo
Eu lembro bem. Foi em 2017 quando a reforma trabalhista foi sancionada. Se você não sabe — assim como eu não saberia, se na época não tivesse escrito tantos conteúdos sobre o tema — foi essa atualização na CLT que regulamentou o teletrabalho.
Naquele ano, o que eu mais fiz foi pesquisar sobre o trabalho remoto. Eu era freela de conteúdo para uma empresa que oferecia soluções para gestão de profissionais nessa modalidade.
E por que isso vem ao caso hoje? Bom, é que já então eu via muitos estudos que apontavam o home office não só como tendência, mas como vantagem para profissionais e empresas. Qualidade de vida, pessoas mais felizes e empresas com funcionários que trabalhavam melhor.
Não acredita? Pois eu nem preciso voltar tanto no tempo. Em 2019, uma pesquisa feita pelo International Workplace Group (IWG), com mais de 15 mil entrevistados, revelou que 80% dos profissionais alegaram um aumento de produtividade e melhora no desempenho ao adotar modelos de trabalho mais flexíveis, caracterizados pelos próprios profissionais pelo trabalho remoto, mais controle sobre a própria jornada e carga horária.
Mas então o que será que deu tão errado nesse 2020 para que até — o antes tão cobiçado — home office viesse a se tornar um vilão para as pessoas?
Meu palpite? Quem está associando o seu sofrimento ao trabalho remoto não estava preparado para a mudança. E não era pra menos. Afinal ela nem chegou a ser uma opção, mas uma necessidade, imposta aos profissionais no meio de uma pandemia.
Tinha como ser de outro jeito? Não. Sem vacina, o isolamento ainda é a melhor forma de evitar a contágio do coronavírus. E não é como se pudéssemos “parar as máquinas” e ficar sem trabalhar. Então o home office se tornou a melhor opção. Mas nem de longe as pessoas estavam prontas para essa virada.
De acordo com a psicóloga Camila Vitule, a pandemia tem influenciado tudo — inclusive o trabalho remoto. Por conta dela, muita gente que não estava nem imaginando aderir ao home office teve teve que adotar a modalidade.
Formada pela PUC-SP e mestre em Ciências (Saúde Coletiva) pelo departamento de Medicina Preventiva da FMUSP, ela explica ainda que “a gente tem limites, estabelecidos, com os quais já estamos muito acostumados. A partir do momento que o parâmetro muda e a gente não tem mais esses limites — ainda mais não podendo sair de casa — aumenta a sobrecarga e isso faz com que a gente não consiga desligar”.
Nesse sentido, isso explica o porquê de profissionais que já adotavam o trabalho remoto num contexto anterior a pandemia não terem sentido tanto os efeitos na sua rotina.
“A única forma de trabalho possível pra mim”
Marília é jornalista freelancer desde de 2014. Mas foi só em maio de 2019, quando encerrou seu último contrato fixo que adotou o modelo 100% remoto. Desde então eu acompanho, pelo Instagram, sua “rotina” de trabalho:
Sim, esse é o “escritório” da Marília — pelo menos por um dia. Em Railay Beach, na Tailândia. “Em maio eu saí do emprego. Aí eu fui pra Itália, depois pra Tailândia, pro Vietnã. Em novembro eu fui pra Austrália. E agora eu estou aqui, em Maragogi. Eu continuo trabalhando em todos esses lugares. Só que eu trabalho de lugares mais legais”, conta ela, entre risos.
Dona do seu tempo
Marília diz que o que mais gosta no trabalho remoto é a liberdade: “Eu sinto que eu não vivo mais pra trabalhar. Eu trabalho pra viver. Porque eu posso encaixar o trabalho na minha vida, nas minhas atividades. Isso me dá uma sensação de liberdade muito grande. E de ser mais dona do meu tempo”.
E será que ela, que já adota o modelo — antes de forma híbrida e agora, integral — há alguns anos, sentiu algo mudar com a pandemia? “Não, não mudou em nada. Porque eu continuo achando o trabalho remoto a única forma possível de se trabalhar”.
Claro que ela lembra de profissões, como aquelas voltadas para serviços, em que o trabalho remoto ainda não é tão prático ou comum. Mas argumenta: “A gente já tem tecnologia o suficiente pra não precisar exigir que uma população inteira se desloque para uma sala, todos os dias”.
Além disso, a jornalista aponta que, nesse contexto atual, não foi a sua percepção sobre o home office que mudou, mas a das outras pessoas: “Eu noto que já ninguém acha estranho o fato de eu trabalhar de casa”.
Nem tudo é perfeito
Marília lembra, porém, que no início sofreu um pouquinho para fazer com que as pessoas entendessem que, apesar de estar em casa, ela não estava à disposição. “Volta e meia tinha um ‘Marilia, me ajuda aqui com um negocinho’, ‘Tu pode receber não sei o quê?’. E não, pra mim não dá, porque eu estou realmente trabalhando, com prazos para cumprir”.
Além disso, ela conta que tem, sim, dificuldade para se desligar do trabalho: “Eu sou jornalista e me desligar do trabalho seria me desligar do mundo. Impossível”.
Porém ela não considera isso como algo negativo. Pelo contrário. Acredita que se trabalhasse numa redação, ainda assim não conseguiria se desligar. “Agora, pelo menos, se eu penso numa pauta, eu vendo essa pauta”.
E como relaxar?
Como ninguém é de ferro, Marília me conta que além da leitura, das séries e da natação, para relaxar ela costuma se dedicar às atividades de cuidado com a casa, como lavar louça, roupa, limpeza: “Isso é muito bom. Tira um pouco a cabeça do foco, te desliga a mente e faz as mãos trabalharem”.
Apostar em alguns hobbies é também a dica da Camila. A psicóloga levanta uma questão importante: se antes olhávamos para o horizonte, nem que fosse apenas no caminho de casa para o trabalho e vice-versa, agora retidos em casa, passamos cada vez mais tempo conectados. Quando não estamos no computador, estamos no celular ou na frente da TV.
“Acho que práticas que podem ajudar a preservar a saúde mental nesse contexto de home office durante a pandemia é buscar ficar o menos conectado possível e tentar arranjar alguns hobbies ou afazeres que não tenham tela. Cozinhar, fazer um exercício físico. Ioga e meditação, por exemplo, são práticas que te levam a prestar mais atenção à você, se acalmar, olhar para o interior, o que ajuda bastante nesse isolamento e nesse contexto mais pesado de home office”.
A palavra-chave é limite
Greg é desenvolvedor front end e trabalha remoto há 1 ano e meio. Apesar de afirmar não ter sentido uma mudança significativa com a chegada do isolamento social, ele confessa que a sua maior dificuldade com o home office foi entender os limites entre início e final do expediente.
“Como eu gosto de estudar um pouco após o horário do trabalho, o que acontecia era que eu acabava por estudar com algum projeto do trabalho e, com isso, tendo ‘dois expedientes’ sem perceber”.
Para resolver o problema, ele apenas mudou pequenos aspectos da sua rotina. Além de não pegar mais nada relacionado ao serviço após o horário, o que faz agora é se dedicar a alguma atividade totalmente fora do ambiente de desenvolvimento de software antes de começar seus estudos. Entre as distrações estão o violão, as séries e o vídeo game.
E parece que ele não está sozinho. Camila conta que tem ouvido de muitas pessoas que elas estão resgatando práticas que tinham antes da quarentena: “Elas estão voltando a tocar instrumentos, desenhando, lendo mais… Estas são saídas que as pessoas também vão achando deste mundo virtual. A gente precisa do mundo real, vivenciado, sentido… da pele mesmo. Então eu acho que qualquer coisa que possibilite um maior contato com esse mundo ‘analógico’, digamos assim, vai num bom sentido pra saúde mental”.
E qual deve ser o futuro do trabalho remoto?
De acordo com a Camila, toda experiência que vivemos, fica marcada. Isso significa que as vivências do trabalho remoto — como a sobrecarga de atividades e a dificuldade de se desligar — que os profissionais vêm experimentando nesse contexto de pandemia devem, sim, influenciar sua percepção sobre a modalidade no futuro.
Contudo, a psicóloga acredita que isso poderá ser ressignificado: “As relações de trabalho ainda vão mudar muito, também no sentido de não serem completamente isoladas, como estamos agora e como estivemos muito mais no começo da pandemia”.
Para ela, tudo indica que o trabalho vire muito mais remoto do que era antes, adquirindo um formato mais híbrido. E, apesar de para a especialista algumas questões que foram evidenciadas neste período de crise sejam inerentes ao trabalho remoto em si — como a linha tênue entre os limites do horário e a exposição às telas —, ele não vai se dar num contexto de pandemia e de isolamento. “E eu acho que isso faz toda a diferença. Vamos construir novas formas de nos relacionar socialmente. E o trabalho é uma das grandes formas de relacionamento que a gente tem”.